Mostrando postagens com marcador rebite. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador rebite. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Da obrigatoriedade de exames toxicológicos em cabelo e unha para renovação de carteira de motorista profissional

   Segundo as Resoluções 425 e 517 do CONTRAN, a partir de abril, será obrigatório realizar exame toxicológico para renovação da carteira nacional de habilitação, categorias C (condutor de veículo motorizado usado para transporte de carga, com peso bruto superior a 3.500 quilos), D (condutor de veículo motorizado usado no transporte de passageiros, com lotação superior a oito lugares além do motorista), e E (condutor de combinação de veículos em que a unidade conduzida se enquadre nas categorias B, C ou D e cuja unidade acoplada ou rebocada tenha peso bruto de 6 mil quilos ou mais; ou cuja lotação seja superior a oito lugares; ou, ainda, que seja enquadrado na categoria trailer.). Estes exames são definidos na legislação como "exames toxicológicos de larga janela de detecção", utilizando como matriz de análise cabelos, pelos e unhas. Essa medida visa evitar os riscos associados à direção perigosa por parte dos motoristas profissionais, que muitas vezes são submetidos a péssimas condições de trabalho e fazem uso de "rebites" para aumentar o estado de vigília. Normalmente, o rebite é realizado com abuso de derivados anfetamínicos e até mesmo cocaína, conforme já foi abordado aqui no blog. 

   No entanto, essa alteração legal parece estar descompassada com a realidade e a ciência atual, razão pela qual a Sociedade Brasileira de Toxicologia se manifestou e encontra-se em processo de consulta pública para definição de uma Guideline oficial da Sociedade Brasileira de Toxicologia para análise de drogas em pelos e cabelos.

   Por que a legislação preconiza análise de cabelos, pelos e unhas? 
As substâncias químicas que ingerimos se depositam nos nossos cabelos através da corrente sanguínea, transpiração e da própria oleosidade da nossa pele. O cabelo cresce a uma taxa razoavelmente constante: cerca de 1cm por mês. Por esta lógica,  a análise de 1cm do cabelo fornece o histórico de consumo de drogas da pessoa naquele mês. Ou seja, uma pessoa que tem um cabelo de 15cm, teoricamente possibilitaria uma análise retrospectiva do seu consumo de drogas nos 15 meses anteriores.  Na resolução do CONTRAN, preconiza-se que os testes devem ser negativos no período de 90 dias anteriores. No entanto, é preciso ficar claro que essa taxa de crescimento não é igual para todas as pessoas, podendo variar de 0.7-1.5cm e que demora cerca de 5-6 dias para que o cabelo cresça da raiz à parte de cima do couro cabeludo, comprometendo essa precisão.
Considerando que um teste positivo de consumo de drogas pode implicar em suspensão do direito de exercer a profissão de motorista, o primeiro pensamento lógico seria raspar os cabelos. Em 2012, durante uma internação em uma clínica para tratar a dependência de drogas, Britney Spears chocou o mundo ao raspar os cabelos, possivelmente para escapar do exame toxicológico. 
   Nestas situações, na impossibilidade de coleta de cabelo, a legislação padroniza o uso de pelos e unhas. Neste caso, a correlação do crescimento é um pouco diferente, mas ainda permite uma análise retrospectiva. Logo, a razão para a adoção destas matrizes é que elas funcionam como uma "caixa-preta", mantendo um registro retrospectivo do consumo de drogas, ao contrário do sangue, ar exalado e mesmo da saliva, onde a presença de drogas revela um consumo recente apenas.
*Mais informações sobre análise nestas matrizes: http://chromatox.com.br/

E aí reside o primeiro descompasso legislativo: 
Diz a Lei 9.503/1997, artigo 165: Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: infração-gravíssima.

Um resultado positivo em um teste toxicológico em cabelo e unha não significa que o indivíduo dirigiu sob o efeito de drogas. Significa que ele utilizou, em algum momento (que pode ter sido durante a sua folga e nas mais diversas situações), tais drogas. Claro que o uso de drogas ilícitas é proibido em qualquer situação, mas neste caso, os motoristas profissionais estariam sujeitos a uma fiscalização muito maior que o cidadão comum (que também dirige), uma patrulha sem precedentes. Há os que defendem que estas profissões apresentam um risco para as vidas que estão sob sua responsabilidade e portanto esta medida é um grande avanço. Porém, é preciso lembrar que vários outros profissionais (profissionais da saúde, por exemplo) também encontram-se diretamente responsáveis pela vida de terceiros e os prejuízos cognitivos de um consumo crônico de drogas também pode impactar suas competências.
   E atenção, advogados, a própria resolução 425 diz que os resultados destes exames retrospectivos poderão ser disponibilizados via judicial para instrução de processo de acidentes de trânsito. Mas novamente, qual é o valor deste resultado se não significa que o indivíduo dirigiu sob o efeito de drogas? Só se estaremos admitindo como prova algo que (des)abone a conduta do cidadão, o que, novamente, é bastante controverso. Imagine você, cidadão comum que não é motorista profissional, que essa situação seria a seguinte: você se vê envolvido em um acidente de trânsito, mas no momento que isto aconteceu, não estava sob influência de nenhuma droga, lícita ou ilícita. No entanto, verificam no seu exame toxicológico que nos últimos meses você bebeu e consumiu drogas. Isso tem alguma relação com o fato pelo qual você estará sendo processado? Prevejo confusão!

   Há ainda várias incoerências técnicas na definição das drogas que seriam triadas, a falta de definição de um valor de cut-off e as metodologias admitidas nestes testes, todas elencadas na manifestação da Sociedade Brasileira de Toxicologia.

  E outro "detalhe" importante, é que, da forma como está redigida a resolução, não há nenhum laboratório brasileiro capacitado para realizar estes testes. Isso porque consta que serão aceitas as análises de laboratórios credenciados pela norma CAP-FDT, uma certificação norte-americana. Logo,  as amostras colhidas serão enviadas para os Estados Unidos. Além de prejudicar o acesso à contraprova por parte dos profissionais testados, essa medida favorece laboratórios internacionais em detrimento dos nacionais. No Brasil, existem laboratórios toxicológicos que possuem acreditação internacional ISO/IEC 1702 (ou seja, seguem padrões de excelência reconhecidos internacionalmente e ainda assim não poderão atuar). Esta acreditação é a norma internacionalmente aceita praticada no nosso país, fornecida pelo INMETRO. Então qual o embasamento/interesse para essa restrição?

  Ao que parece, mais uma vez temos uma alteração legal envolvendo um conhecimento técnico onde especialistas não foram consultados. Vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos!








domingo, 1 de fevereiro de 2015

O Doping de cada dia


   O doping caracteriza-se pelo uso de "substâncias químicas ou métodos utilizados para melhorar o desempenho em atividades físicas ou mentais". Quando falamos em doping, o mais comum é lembrarmos de competições esportivas e atletas que tiveram suas carreiras devastadas pelo uso desta prática incompatível com os princípios de superação justa do esporte. Como o nosso país sediará as próximas Olimpíadas em 2016, este assunto suscita bastante interesse. Mas hoje, falaremos do doping que não compete por medalhas, mas por produtividade. Há vários compostos que podem ser utilizados para este fim, mas os mais comuns são os estimulantes do sistema nervoso central. Neste grupo, as substâncias que me interessam hoje são a cocaína e os derivados anfetamínicos (anfetamina, metanfetamina, ecstasy, e o metilfeniato, aquele que você conhece como Ritalina). Não vamos falar hoje sobre o café e o "guaraná cerebral" que você toma para ficar acordado e desempenhar algumas tarefas porque a minha preocupação envolve os compostos anteriormente citados.

  Quando surgiram, as anfetaminas foram utilizadas no tratamento da obesidade (embora as evidências mostrem que a tolerância para estes efeitos são adquiridos muito rapidamente e os prejuízos não justifiquem esta indicação), narcolepsia, hipotensão e síndrome de hiperatividade em crianças. Atualmente, a Ritalina é largamente utilizada nos transtornos de hiperatividade (até mesmo em crianças que não precisariam desta medicação... E nestes casos, pratica-se a "ritalinização" da infância, cujas consequências só saberemos mais tarde...). 
   
  O uso de estimulantes para melhorar a performance é antigo. Durante a II Guerra Mundial, por exemplo, tanto o Eixo quanto os Aliados utilizavam anfetaminas para combater a fadiga e aumentar o estado de alerta das tropas. Os japoneses também utilizaram em trabalhadores civis para aumentar a produção. Mesmo no Brasil este grupo de substâncias é constantemente encontrado nas análises ocupacionais. De fato estes compostos aumentam o estado de alerta físico e mental e por isso são muito populares para indivíduos que necessitam de vigília prolongada, como os caminhoneiros.


   O rebite é uma prática comum dos motoristas profissionais nas estradas brasileiras. O objetivo é reduzir o sono e assim aumentar a jornada de trabalho, muitas vezes extenuante. Este assunto é muito sensível e o diretor da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego  já chegou a dizer que prefere que os motoristas consumam alguma substância e cheguem vivo do que adormeçam no volante. Eu acho temerário assumirmos esta postura em detrimento de lutar por uma jornada de trabalho justa pois estes profissionais sacrificam a sua saúde pelo trabalho. 
  As anfetaminas produzem uma acentuada estimulação do sistema nervoso central, mais persistentes do que os produzidos pela cocaína, e por isso são classicamente utilizadas como rebite.  Mas as anfetaminas são compostos que apresentam tolerância com o passar do tempo. Ou seja, para ter os mesmos efeitos observados anteriormente é preciso aumentar a dose. Atualmente, por acreditarem que com a cocaína os efeitos seriam mais intensos, esta droga tem ganhado espaço entre os motoristas. E o efeito cumulativo de uma jornada extenuante, altas doses destas substâncias que aumentam a impulsividade e a consequente fadiga são fatores que aumentam o risco de acidentes, como os que temos observado nas nossas estradas (no início deste ano houve vários exemplos). 
  Então, surge a Resolução 460/2013 do Conselho Nacional de Trânsito, que regulamenta a exigência de exames toxicológicos de larga janela de detecção para consumo de substâncias psicoativas na renovação das categorias C (veículos de transporte de carga), D (veículo de transporte de mais de 8 passageiros), e E (ônibus articulados, biarticulados ou com dois reboques acoplados) da carteira nacional de habilitação. Os exames toxicológicos deverão ser realizados em matrizes como cabelo, pelo ou unha. Estas matrizes permitem uma análise retrospectiva do consumo de drogas porque à medida que o cabelo cresce, drogas são incorporadas e aprisionadas no cabelo. Como a taxa de crescimento do cabelo é cerca de 1cm por mês, funciona como uma "caixa preta", que registra o consumo de droga nos meses anteriores.


 Britney Spears, que raspou os cabelos na ocasião em que foi internada em uma clínica para dependentes de drogas. Estaria fugindo do teste de detecção de drogas? 

  Os resultados de uma análise em cabelo demonstrarão se a pessoa consumiu drogas alguma vez nos meses passados. A crítica a esta resolução é que o indivíduo pode ter consumido com fins recreativos mas não ter dirigido sob o efeito destas substâncias. De todo modo, o uso de substâncias ilícitas e a natureza da profissão dos motoristas são incompatíveis uma vez que que envolve a responsabilidade pela segurança de terceiros. 

   Eu sou a favor de iniciativas como a Balada Segura e acho que além de submeter os motoristas à detecção de álcool, deveríamos testar também o consumo de outras drogas para verificar se os motoristas estão dirigindo sob o efeito delas. Já existem algumas iniciativas neste sentido utilizando teste em saliva e os resultados podem ser abordados em um post futuro.
   
     E o doping intelectual?

  Outra situação recorrente é a utilização de compostos para melhorar a concentração nos estudos. Nestes casos, a medicação de escolha é a Ritalina. Relatos informais de meus alunos quando faziam estágio em farmácia comercial confirmam o aumento da venda destes compostos em população universitária nos fins de semestre. Esta situação também já foi documentada em um estudo que analisou a presença de ritalina e seu principal metabólito na água do campus de uma universidade e verificou um aumento na sua detecção em períodos de prova.
 A ritalina é um medicamento utilizado no tratamento do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDHA). Para indivíduos que apresentam este transtorno, o uso desta medicação é bem documentada em termos de evidências de eficácia (se é o seu caso, continue tomando!). O uso não médico se fundamenta na possível melhora cognitiva que este composto poderia fornecer, melhorando o desempenho acadêmico. 

   Mas e funciona? A literatura científica apresenta evidências bem documentadas sobre a melhora na performance de tarefas tediosas e fatigantes após o uso de derivados anfetamínicos. Este seria o caso de trabalhadores que desempenham tarefas simples e "mecânicas" como por exemplo martelar a sola de um sapato no fluxo de uma indústria. 
  E quanto às tarefas mais complexas envolvidas no aproveitamento do tempo de estudo? Neste caso a literatura encontra dificuldades em apoiar este uso. Há diversos estudos controversos, alguns atestando que funciona para estes fins e tantos outros apoiando conclusões contrárias. Então, optei por utilizar como referência uma revisão bibliográfica que selecionou estudos que avaliaram a efetividade da ritalina em indivíduos saudáveis (sem transtornos psiquiátricos ou alterações cognitivas) que fizeram uso desta medicação. 


Técnica de tratamento de dados utilizada para avaliar os estudos envolvendo o uso de metilfenidato como doping intelectual em indivíduos saudáveis na revisão sistemática utilizada como referência. (RCT = ensaio clínico controlado randomizado).

  A conclusão dos autores é que não há evidências que comprovem que o metilfenidato melhore a capacidade de aprendizagem de indivíduos saudáveis. Foi observado um efeito positivo na memória espacial destes indivíduos, mas não na melhora da atenção e foco uma vez que a maioria dos estudos apresenta ausência destes efeitos ou até mesmo efeito contrário! Na maioria das vezes os efeitos positivos são meramente subjetivos, que é justamente o que motiva o uso.
  Vale ressaltar que a Ritalina é um medicamento anfetamínico que atua em regiões cerebrais envolvidas nos mecanismos de dependência química. Na própria bula do medicamento consta uma declaração acerca do seu potencial de causar dependência. A utilização por adolescentes é ainda mais preocupante devido às fases de desenvolvimento neuronal. Os centros de controle de julgamento, tomada de decisões, inibição do comportamento, emoção e raciocínio lógico só completam o seu desenvolvimento no início da vida adulta (o que explica muita coisa). Logo, existe a hipótese de que o uso de um composto que atua em neurotransmissores como noradrenalina e dopamina pode interferir com a maturação destas vias, produzindo consequências comportamentais (este argumento é discutido aqui e aqui).
 Enfim, qualquer medicamento tem prós e contras. Quando optamos por utilizar um medicamento, estas relações devem ser avaliadas e o uso só se justifica se os benefícios forem maiores que os danos. Estes são princípios do uso racional de medicamentos. Indivíduos que apresentam um comprometimento das suas funções por transtornos como o TDHA são beneficiados pelo uso de medicação porque este transtorno afeta consideravelmente o seu desempenho nas tarefas diárias. Mas em indivíduos saudáveis (onde não há um desequilíbrio nos neurotransmissores), este uso não se justifica. 
  
  Para uma revisão toxicológica sobre os estimulantes do sistema nervoso central, consulte o capítulo 4.3. Estimulantes do Sistema Nervoso Central, escrito por Alice A. da Matta Chasin, Erasmo Soares da Silva e Virgínia Martins Carvalho, no livro Fundamentos de Toxicologia, dos autores Seizi Oga, Márcia Maria de A. Camargo e José Antonio de O. Batistuzzo, 4º Edição, Editora Atheneu.