segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O curioso caso do Zica Vírus (por Joanna Zmurko e Joana Rocha-Pereira)


O mosquito Aedes aegypti é um velho conhecido dos brasileiros. A novidade é que além da dengue, este mosquito agora nos ameaça com a transmissão da febre chikungunya e do zica vírus. A associação entre o zica vírus e os casos de microcefalia deixaram os brasileiros em alerta, e muitas dúvidas surgiram: 

 - Se este vírus já existia em outros países, por que somente agora surgiu esta associação com os casos de microcefalia?
 - É possível que o zica vírus seja transmitido sexualmente?
 - Qual é o mecanismo envolvido na microcefalia?

  Paralelamente ao aumento dos casos relatados nos boletins epidemiológicos surgem as teorias da conspiração, que encontram um terreno fértil com a criatividade brasileira e a ausência de certezas. Alguns cientistas brasileiros já se empenham em desvendar estes mistérios mas  de fato a nossa experiência com este vírus é pequena, ainda estamos aprendendo a conhecê-lo. 

  Por isso, o post de hoje conta com a colaboração de duas cientistas que tem maior intimidade com o Zica vírus: a Doutora Joana Zmurko e a Doutora Joana Rocha Pereira (farmacêutica), que trabalham no Laboratório de Virologia Prof. J. Neyts, KU Leuven, localizado na Bélgica. Em razão desta colaboração internacional, o post será veiculado em português e em inglês.  Recomendo a todos adicionarem o perfil deste grupo no facebook (que pode ser encontrado como Virology and Antiviral Research Laboratory of Prof. J. Neyts  KU Leuven), pois lá se encontra um conteúdo muito interessante. Obrigada Joana Pereira e Joana Zmurko pela contribuição! 

Boa leitura!

O vírus Zika (ZIKV) é um patógeno humano transmitido pela picada de mosquitos, próximo dos vírus da dengue, febre-amarela, febre do Nilo ocidental e encefalite japonesa. O nome “Zika” deriva da floresta Zika no Uganda, onde o vírus foi descoberto e isolado de macacos em 19471. Hoje sabe-se que o ZIKV estava já em circulação na segunda metade do século XX, com relatos da sua presença em África e Ásia.

Os países com casos de transmissão de ZIKV.
                        
 A sua disseminação envolveu sobretudo primatas não-humanos, grandes mamíferos (ovelhas, cabras, zebras) e roedores2 e uma grande variedade de espécies de mosquitos que agem como vetor, incluindo Aedes aegypti 3 (o mesmo vetor da dengue). Entre 1966 e 2010 casos esporádicos de infeção em humanos foram reportados no Gabão4, Nigéria5, Senegal6, Camboja5 e na Micronésia3. Até então, sabíamos que a infeção esporádica por ZIKV em humanos é autolimitada, moderada e chamada de febre Zika, caracterizando-se por dores de cabeça, febre transitória, mal-estar, conjuntivite (Fig.2a), erupção maculopapular (Fig. 2b and 2c) e dores nas costas7
Os sintomas da infeção por ZIKV (A) Conjuntivite (B) Exantema Maculopapular nas costas. Imagens retiradas de Kutsuna, S. et al. Two cases of Zika fever imported from French Polynesia to Japan, December 2013 to January 2014. Euro Surveill. 19, 1–4 (2014).

No entanto, na última década a importância do ZIKV tomou novas proporções. Em 2007, uma epidemia de febre e exantema associados ao ZIKV foi relatado no estado Yap, Estados Federados da Micronésia. Neste surto, 185 casos de infeções por ZIKV foram confirmados e a prevalência de anticorpos anti-ZIKV era de 73% da população3. Durante o surto de ZIKV na Polinésia Francesa que decorreu entre Outubro de 2013 e Fevereiro de 2014, mais de 30 000 pessoas com febre Zika procuraram assistência médica, o que demonstrou que este é um vírus humano em emergência8,9. Neste surto, vários pacientes apresentaram graves complicações neurológicas: encefalite e meningo-encefalite7,10, o que mostra que a emergência do ZIKV representa uma ameaça à saúde humana e deve ser olhada com seriedade. O ZIKV propagou-se então para a Nova Caledónia (onde 114 casos autóctones foram reportados) e Ilhas Cook 3 e desde 2015 infeções por ZIKV foram reportadas na América Central e do Sul: Brasil11,12, Ilha da Páscoa (Chile) e República Dominicana13, Colômbia, Suriname e ainda em Cabo Verde (África Ocidental). No Brasil, desde a primeira deteção em 2015, o ZIKV foi reportado em 18 estados tendo possivelmente ocorrido entre 440 000 a 1 300 000 casos, segundo o ministério da saúde brasileiro. Para além disso, um número cada vez maior de viajantes que regressam de regiões endémicas foram diagnosticados com ZIKV14–17. Também relevante é o facto de os mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus, vetores primários do ZIKV, se terem expandido por todas as regiões tropicais do globo, pelo sul da Europa e Califórnia, estando presentes em todos os continentes (com a exceção da Antártida).

O género Flavivirus, ao qual o ZIKV pertence, inclui mais de 70 vírus. Estes são também chamados de arbovírus (arthropod-borne viruses) dado que são transmitidos por picada de mosquito, carraças ou ácaros que agem como vetores ou hospedeiros intermediários no seu ciclo de vida, enquanto os animais (primatas, cavalos) são o hospedeiro definitivo. As infeções em humanos são por norma acidentais, uma vez que os humanos não são capazes de albergar uma replicação viral suficientemente intensa para reinfectar novos artrópodes e permitir que o ciclo de vida do vírus continue – o Homem é um hospedeiro acidental. As exceções a esta regra são a dengue e a febre-amarela, que estão suficientemente adaptados à espécie humana e não dependem necessariamente de hospedeiros animais (apesar de esta transmissão a animais continuar a ser importante). A possibilidade de transmissão através de produtos sanguíneos foi demonstrada 18 e torna o screening de arbovírus nestes produtos relevante para países com casos autóctones. A transmissão vertical foi raramente reportada para a dengue19, vírus do Nilo ocidental20 e ZIKV21. Surpreendente é o facto de o ZIKV ser até ao momento o único flavivírus para o qual foi descrita transmissão sexual em humanos22,23, constituindo uma nova via de transmissão dos flavivírus. Desconhece-se se esta é uma via de transmissão comum e que fatores ou características virais podem contribuir para este fenómeno. Outra característica alarmante e impressionante do ZIKV é a relação que foi reportada entre os surtos de ZIKV e um aumento das malformações congénitas. É isto que se passa neste momento no Brasil, onde a taxa anual de microcefalia aumentou de 5.4 por 100 000 nados vivos em 2014 para 99.7 por 100 000 nados vivos em 201524,25. O ZIKV foi detetado no sangue e tecidos de um bebé com microcefalia pelo Instituto Carlos Chagas. Este aumento levou estados como Pernambuco ou Recife (nordeste do Brasil) a declarar o estado de emergência. O Ministério da Saúde declarou emergência de saúde pública à escala nacional, recomendando a mulheres e famílias a adiar uma gestação planejada  (se possível), devido à falta de informação e até que as autoridades de saúde definam uma estratégia para lidar com os pacientes expostos e potencialmente infetados.

Olhando os fatos, parece que estamos perante a propagação de mais flavivírus através do planeta. Presumiu-se que o ZIKV causaria infeções agudas e autolimitadas sem graves consequências. No entanto os surtos da Polinésia Francesa e do Brasil sugerem que este vírus é uma importante causa de encefalite e mais casos vão provavelmente aparecer. Neste momento não há qualquer vacina ou terapia antivírica especifica para o tratamento das infeções por ZIKV. O aumento da ocorrência da febre Zika chama a atenção para a necessidade de medidas terapêuticas e preventivas contra o ZIKV, bem como de ferramentas científicas que permitam estudar e desenvolver essas terapias. O desenvolvimento duma vacina seria a melhor solução a longo-termo para prevenir a disseminação do ZIKV e as consequências da doença. Para além disso, medicamentos antivirais contra o ZIKV devem ser desenvolvidos. Devido ao elevado custo do processo de desenvolvimentos de novos medicamentos, os fármacos candidatos a tratar a febre de dengue deveriam ser testados contra o ZIKV (devido às semelhanças entre estes vírus) e se possível reposicionados. Se esta abordagem não for bem-sucedida, o desenvolvimento de um fármaco antiviral com atividade pan-flavivírus é o objetivo a seguir e seria extremamente útil na profilaxia de populações de risco em áreas onde o vetor esta presente e/ ou decorrem surtos.

O que vamos aprender com este surto em larga escala no Brasil? Pela primeira vez, uma análise de risco para infeções sintomáticas, doença grave, transmissão vertical e mesmo transmissão sexual será possível e (mais ou menos) precisa. Estratégias para prestação de cuidados ao paciente, prevenção e informação à população terão de ser postas em prática antes que outros surtos aconteçam. Um diagnóstico laboratorial simples, rápido e específico deve ser disponibilizado e uma rede de vigilância eficiente deve ser estabelecida para monitorizar e detetar surtos o mais cedo e rapidamente possível. As autoridades de saúde e a comunidade vão com certeza passar a prestar atenção ao ZIKV a partir de agora. Um exemplo disso é que o Zika entrou na mais recente lista dos “Patógenos mais perigosos” publicada pela Organização Mundial de Saúde.  

Referências:
1. Dick, G. W. A., Kitchen, S. F. & Haddow, A. J. TRANSACTIONS OF THE ROYAL SOCIETY OF. 46, (1952).
2.           Hoogstfcaal, H., Roberts, T. J. & Ahmed, I. P. A sero-epidemiological survey for certain in Pakistan arboviruses ( Togaviridae ). 77, 442–445 (1983).
3.           Ioos, S. et al. Current Zika virus epidemiology and recent epidemics. Med. Mal. Infect. 44, 302–307 (2014).
4.           Grard, G. et al. Zika Virus in Gabon (Central Africa) - 2007: A New Threat from Aedes albopictus? PLoS Negl. Trop. Dis. 8, e2681 (2014).
5.           Haddow, A. D. et al. Genetic characterization of Zika virus strains: geographic expansion of the Asian lineage. PLoS Negl. Trop. Dis. 6, e1477 (2012).
6.           Diallo, D. et al. Zika Virus Emergence in Mosquitoes in Southeastern Senegal, 2011. PLoS One 9, e109442 (2014).
7.           Assessment, R. R. RAPID RISK ASSESSMENT Zika virus infection outbreak , French Polynesia Main conclusions and options for mitigation Consulted experts ECDC internal response team. (2014).
8.           Musso, D., Nilles, E. J. & Cao-Lormeau, V.-M. Rapid spreading of emerging Zika virus in the Pacific area. Clin. Microbiol. Infect. 1–5 (2014). doi:10.1111/1469-0691.12707
9.           Cao-Lormeau, V.-M. Zika virus, French polynesia, South pacific, 2013. Emerg. Infect. Dis. 20, 1960 (2014).
10.        Oehler, E. et al. Zika virus infection complicated by Guillain-Barré syndrome – case report , French Polynesia , December 2013. 1, 7–9 (2014).
11.        Campos, G. S., Bandeira, A. C. & Sardi, S. I. Zika Virus Outbreak, Bahia, Brazil. Emerg. Infect. Dis. 21, doi: 10.3201/eid2110.150847 (2015).
12.        Musso, D., Beltrame, A. & Zammarchi, L. Zika Virus Transmission from French Polynesia to Brazil Schistosomiasis Screening of Travelers from Italy with Possible Exposure in Corsica , France. 21, 2015 (2016).
13.        Rodriguez-Morales, A. J. Zika: the new arbovirus threat for Latin America. J. Infect. Dev. Ctries. 9, (2015).
14.        Kutsuna, S. et al. Two cases of Zika fever imported from French Polynesia to Japan, December 2013 to January 2014. Euro Surveill. 19, 1–4 (2014).
15.        Zammarchi, L. et al. Zika virus infections imported to Italy: Clinical, immunological and virological findings, and public health implications. J. Clin. Virol. 63, 32–35 (2015).
16.        Wæhre, T., Maagard, A., Tappe, D., Cadar, D. & Schmidt-Chanasit, J. Zika virus infection after travel to Tahiti, December 2013. Emerg. Infect. Dis. 20, 1412–1414 (2014).