O mosquito Aedes aegypti é um velho conhecido dos brasileiros. A novidade é que além da dengue, este mosquito agora nos ameaça com a transmissão da febre chikungunya e do zica vírus. A associação entre o zica vírus e os casos de microcefalia deixaram os brasileiros em alerta, e muitas dúvidas surgiram:
- Se este vírus já existia em outros países, por que somente agora surgiu esta associação com os casos de microcefalia?
- É possível que o zica vírus seja transmitido sexualmente?
- Qual é o mecanismo envolvido na microcefalia?
Paralelamente ao aumento dos casos relatados nos boletins epidemiológicos surgem as teorias da conspiração, que encontram um terreno fértil com a criatividade brasileira e a ausência de certezas. Alguns cientistas brasileiros já se empenham em desvendar estes mistérios mas de fato a nossa experiência com este vírus é pequena, ainda estamos aprendendo a conhecê-lo.
Por isso, o post de hoje conta com a colaboração de duas cientistas que tem maior intimidade com o Zica vírus: a Doutora Joana Zmurko e a Doutora Joana Rocha Pereira (farmacêutica), que trabalham no Laboratório de Virologia Prof. J. Neyts, KU Leuven, localizado na Bélgica. Em razão desta colaboração internacional, o post será veiculado em português e em inglês. Recomendo a todos adicionarem o perfil deste grupo no facebook (que pode ser encontrado como Virology and Antiviral Research Laboratory of Prof. J. Neyts KU Leuven), pois lá se encontra um conteúdo muito interessante. Obrigada Joana Pereira e Joana Zmurko pela contribuição!
Boa leitura!
O vírus Zika (ZIKV) é um
patógeno humano transmitido pela picada de mosquitos, próximo dos vírus da dengue, febre-amarela, febre do Nilo ocidental e encefalite japonesa. O nome “Zika”
deriva da floresta Zika no Uganda, onde o vírus foi descoberto e isolado de
macacos em 19471. Hoje sabe-se que o ZIKV estava já em
circulação na segunda metade do século XX, com relatos da sua presença em África e Ásia.
Os países com casos de transmissão de ZIKV. |
A sua
disseminação envolveu sobretudo primatas não-humanos, grandes mamíferos
(ovelhas, cabras, zebras) e roedores2 e uma grande variedade de espécies de mosquitos que agem como vetor,
incluindo Aedes aegypti 3 (o mesmo vetor da dengue). Entre 1966 e
2010 casos esporádicos de infeção em humanos foram reportados no Gabão4, Nigéria5, Senegal6, Camboja5 e na Micronésia3. Até então, sabíamos que a infeção esporádica por ZIKV em humanos
é autolimitada, moderada e chamada de febre
Zika, caracterizando-se por dores de cabeça, febre transitória, mal-estar,
conjuntivite (Fig.2a), erupção maculopapular (Fig. 2b and 2c) e dores nas costas7.
No entanto, na última década a importância do ZIKV tomou novas proporções.
Em 2007, uma epidemia de febre e exantema associados ao ZIKV foi relatado no
estado Yap, Estados Federados da Micronésia. Neste surto, 185 casos de infeções
por ZIKV foram confirmados e a prevalência de anticorpos anti-ZIKV era de 73%
da população3. Durante o surto de ZIKV na Polinésia
Francesa que decorreu entre Outubro de 2013 e Fevereiro de 2014, mais de 30 000
pessoas com febre Zika procuraram assistência médica, o que demonstrou que este
é um vírus humano em emergência8,9. Neste surto, vários pacientes
apresentaram graves complicações neurológicas: encefalite e meningo-encefalite7,10, o que mostra que a emergência do ZIKV
representa uma ameaça à saúde humana e deve ser olhada com seriedade. O ZIKV
propagou-se então para a Nova Caledónia (onde 114 casos autóctones foram
reportados) e Ilhas Cook 3 e desde 2015 infeções por ZIKV foram
reportadas na América Central e do Sul:
Brasil11,12, Ilha da Páscoa (Chile) e República
Dominicana13, Colômbia, Suriname e ainda em Cabo Verde
(África Ocidental). No Brasil, desde a primeira deteção em 2015, o ZIKV foi
reportado em 18 estados tendo possivelmente ocorrido entre 440 000 a 1 300 000
casos, segundo o ministério da saúde brasileiro. Para além disso, um número
cada vez maior de viajantes que regressam de regiões endémicas foram
diagnosticados com ZIKV14–17. Também relevante é o facto de os
mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus, vetores primários do
ZIKV, se terem expandido por todas as
regiões tropicais do globo, pelo sul da Europa e Califórnia, estando presentes
em todos os continentes (com a exceção da Antártida).
O género Flavivirus, ao qual o
ZIKV pertence, inclui mais de 70 vírus. Estes são também chamados de arbovírus (arthropod-borne viruses)
dado que são transmitidos por picada de mosquito, carraças ou ácaros que agem
como vetores ou hospedeiros intermediários no seu ciclo de vida, enquanto os
animais (primatas, cavalos) são o hospedeiro definitivo. As infeções em humanos
são por norma acidentais, uma vez que os humanos não são capazes de albergar
uma replicação viral suficientemente intensa para reinfectar novos artrópodes e
permitir que o ciclo de vida do vírus continue – o Homem é um hospedeiro
acidental. As exceções a esta regra são a dengue e a febre-amarela, que estão
suficientemente adaptados à espécie humana e não dependem necessariamente de
hospedeiros animais (apesar de esta transmissão a animais continuar a ser
importante). A possibilidade de transmissão através de produtos sanguíneos foi demonstrada
18 e torna o screening de arbovírus nestes
produtos relevante para países com casos autóctones. A transmissão vertical foi
raramente reportada para a dengue19, vírus do Nilo ocidental20 e ZIKV21. Surpreendente é o facto de o ZIKV ser
até ao momento o único flavivírus para o qual foi descrita transmissão sexual em humanos22,23, constituindo uma nova via de transmissão
dos flavivírus. Desconhece-se se esta é uma via de transmissão comum e que
fatores ou características virais podem contribuir para este fenómeno. Outra
característica alarmante e impressionante do ZIKV é a relação que foi reportada
entre os surtos de ZIKV e um aumento das malformações
congénitas. É isto que se passa neste momento no Brasil, onde a taxa anual
de microcefalia aumentou de 5.4 por 100 000 nados vivos em 2014 para 99.7 por
100 000 nados vivos em 201524,25. O ZIKV foi detetado no sangue e tecidos
de um bebé com microcefalia pelo Instituto Carlos Chagas. Este aumento levou
estados como Pernambuco ou Recife (nordeste do Brasil) a declarar o estado de
emergência. O Ministério da Saúde declarou emergência de saúde pública à escala
nacional, recomendando a mulheres e famílias a adiar uma gestação planejada (se
possível), devido à falta de informação e até que as autoridades de saúde
definam uma estratégia para lidar com os pacientes expostos e potencialmente
infetados.
Olhando os fatos, parece que estamos perante a propagação de mais
flavivírus através do planeta. Presumiu-se que o ZIKV causaria infeções agudas
e autolimitadas sem graves consequências. No entanto os surtos da Polinésia
Francesa e do Brasil sugerem que este vírus é uma importante causa de
encefalite e mais casos vão provavelmente aparecer. Neste momento não há
qualquer vacina ou terapia antivírica especifica para o
tratamento das infeções por ZIKV. O aumento da ocorrência da febre Zika chama a
atenção para a necessidade de medidas terapêuticas e preventivas contra o ZIKV,
bem como de ferramentas científicas que permitam estudar e desenvolver essas
terapias. O desenvolvimento duma vacina seria a melhor solução a longo-termo
para prevenir a disseminação do ZIKV e as consequências da doença. Para além
disso, medicamentos antivirais contra o ZIKV devem ser desenvolvidos. Devido ao
elevado custo do processo de desenvolvimentos de novos medicamentos, os
fármacos candidatos a tratar a febre de dengue deveriam ser testados contra o
ZIKV (devido às semelhanças entre estes vírus) e se possível reposicionados. Se
esta abordagem não for bem-sucedida, o desenvolvimento de um fármaco antiviral
com atividade pan-flavivírus é o objetivo a seguir e seria extremamente útil na
profilaxia de populações de risco em áreas onde o vetor esta presente e/ ou
decorrem surtos.
O que vamos aprender com
este surto em larga escala no Brasil? Pela primeira vez, uma análise de risco para infeções sintomáticas, doença
grave, transmissão vertical e mesmo transmissão sexual será possível e (mais ou
menos) precisa. Estratégias para prestação de cuidados ao paciente, prevenção
e informação à população terão de ser postas em prática antes que outros surtos
aconteçam. Um diagnóstico laboratorial simples, rápido e específico deve ser
disponibilizado e uma rede de vigilância eficiente deve ser estabelecida para
monitorizar e detetar surtos o mais cedo e rapidamente possível. As autoridades
de saúde e a comunidade vão com certeza passar a prestar atenção ao ZIKV a
partir de agora. Um exemplo disso é que o Zika entrou na mais recente lista dos
“Patógenos mais perigosos” publicada pela Organização Mundial de Saúde.
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