quinta-feira, 12 de março de 2015

Aspectos toxicológicos da Cannabis

   A Cannabis sativa é originária da Ásia Central e é considerada uma das plantas mais antigas cultivadas pelo homem. Registros sugerem que ela chegou nas Américas no início do século XIX, sendo utilizada principalmente para fins têxteis e medicinais. No Brasil, acredita-se que foi introduzida na época das capitanias
hereditárias, mas existem teorias que sugerem que os escravos utilizavam a planta com fins hipnóticos. Este é um ponto importante pois demonstra que esta droga é conhecida há muito tempo. Apesar dessa longa experiência, muitos estudos se contradizem sobre os seus efeitos e mesmo o nosso entendimento farmacológico sobre os receptores canabinoides só evoluiu muito nos últimos anos. 
   Ainda assim, em 2013, segundo o Relatório Mundial sobre drogas, a maconha foi a droga ilícita mais consumida do mundo. Os dados de 2014 mostram que globalmente, seu uso parece estar em declínio. A legalização da maconha é um assunto que não pode ser simplificado. Nesta semana,  a maconha é o assunto da aula teórica da disciplina de Análises Toxicológicas. Para fundamentar a discussão acerca da legalização da Cannabis, além dos aspectos farmaco- e toxicológicos, é necessário entender qual é o tratamento legal atual no Brasil e como é nos demais países que frequentemente são citados como exemplo sem o real conhecimento (post sobre isso, com a participação do Artur Grando, aqui). Além disso, é preciso conhecer os potenciais danos e com base nestes conhecimentos, analisar o cenário social e as consequências de uma legislação proibitiva versus uma flexibilização na política antidrogas. Para pensar sobre aspecto social, recomendo este post do sociólogo e professor universitário Ivan Dourado, no blog Autonomia Sociológica. 

   Antes de abordar os aspectos toxicológicos, gostaria de fazer uma consideração importante: como este é um assunto que desperta paixões, gostaria de deixar claro que o meu interesse na maconha é puramente acadêmico. Procuro olhar os estudos com resultados negativos e positivos da mesma maneira. Às vezes se torna difícil discutir estes aspectos com radicais de qualquer natureza (o usuário, que sempre sabe tudo e para quem a planta é um presente de Deus, ou o "contrário fervoroso", que a demoniza). O processo de aceitação dos resultados científicos é ainda mais complicado porque em ciência, como nas outras áreas da vida, existem publicações das mais diversas... Ou seja, pouco adianta o argumento "mas existe um artigo..." Pois artigos existem muitos. É preciso um certo conhecimento técnico para analisar a qualidade dos resultados gerados e a fonte. Mas via de regra, o melhor material científico é aquele publicado em boas revistas, que para a sua publicação, exige uma revisão por outros cientistas, que julgarão a maneira como as experiências foram feitas (pois eles detém este conhecimento técnico) e a qualidade dos resultados e conclusões. O material publicado em livros ou em blogs (como este!) não requerem este processo de revisão, e por isso, o filtro é bem menor (para não dizer que não existe). Conheço pessoas que já me disseram abertamente que quando tem um trabalho não tão bom (lê-se cheio de falhas que jamais seria aceito para publicação em revistas boas), "para não deixar na gaveta", atiram esta produção para o mundo na forma de capítulo de livro. Em tempos de internet, então... publicar qualquer coisa ficou ainda mais fácil! Por isso, devemos cuidar a qualidade das fontes que utilizamos.
    Tudo o que você quiser provar, você encontrará em algum lugar argumentos para te apoiar. A questão é a qualidade dos argumentos... e como me propus a escrever sobre isso, quero falar sobre os meus critérios de seleção da informação: Na minha vida científica, nunca trabalhei diretamente com a maconha ou seus derivados. Não tenho nenhum trabalho publicado neste tema, mas é um conteúdo que abordo na minha disciplina. A minha formação é na área de toxicologia e faz alguns anos que estudo sobre isso, todos os dias lendo algo sobre o assunto, indo a congressos sérios anualmente, trocando ideias com cientistas renomados da área e muitas vezes tendo aula com eles. Por isso acredito que tenho alguma experiência com estes tipos de estudo, que me ajudaram a desenvolver o meu filtro.

   Bom, vamos lá!

   Toxicidade a curto prazo
    
   A toxicidade aguda a curto prazo da maconha é realmente muito baixa. A sua dose fatal é estimada em cerca de 15 a 70g em humanos, o que justifica a ausência de relatos de overdose. É importante referir que os efeitos clínicos após o uso de maconha variam de indivíduo para indivíduo, mas incluem euforia, diminuição da ansiedade e sedação, alterações na percepção sensorial, prejuízos na memória recente, dificuldade de atenção, concentração e tomada de decisões devido ao aumento do fluxo de ideias, perda de discriminação de tempo e espaço e diminuição da coordenação motora.
   Um aumento na dose pode produzir intensificação nas emoções e até alucinações transitórias devido às alterações na percepção. Existem relatos de sintomas psicóticos relacionados ao uso agudo de maconha, além da hiperemia da conjuntiva, aumento do apetite e alterações na pressão arterial devido à taquicardia e hipotensão ortostática.
    
  Toxicidade a longo prazo

   Considerando os efeitos respiratórios, as fumaças do tabaco e da Cannabis são bastante similares na composição da fase particulada e gasosa, com a óbvia exceção da presença de nicotina ou canabinoides, respectivamente. Vale lembrar que embora tanto o tabaco quanto a maconha sejam fumadas, o perfil de exposição de ambos varia substancialmente devido à dinâmica de fumar. Enquanto o fumante de tabaco traga o cigarro com tragadas curtas, a Cannabis é fumada com um maior volume de tragada, inalação mais profunda e maior tempo de retenção da fumaça, o que acarreta um substancial depósito de alcatrão (alerta de câncer) no pulmão. Assim, o consumo crônico de Cannabis de fato é associada a um aumento dos danos leves à mucosa que resultam em tosse, catarro, espirros, sinusite. Mas considerando a função pulmonar e a relação com o desenvolvimento de DPOC (Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica), os estudos são inconclusivos, enquanto que no tabaco esta relação já é bem estabelecida. Ainda, um estudo com 5.000 fumantes de maconha ou tabaco, acompanhados por 20 anos (portanto com um bom número de participantes acompanhados por um longo período), concluiu que o uso ocasional de maconha ou  mesmo o consumo de 1 cigarro por dia de maconha não está associado a efeitos adversos sobre a função pulmonar, ao contrário do que é observado com o tabaco.

   Outra grande preocupação quando se fala em Cannabis são os casos de psicopatologias. Existem trabalhos associando o uso de maconha com um aumento de risco de desenvolver esquizofrenia ou sintomas psicóticos em indivíduos predispostos ou não. Quando o consumo é realizado por adolescentes, o risco de transtornos psicóticos é ainda maior. Em razão destes efeitos (e também outros elencados no manifesto), a Sociedade Brasileira de Psiquiatria se manifestou contrária à legalização da maconha. Os motivos encontram-se elencados aqui para você julgar se concorda ou não.

   Existe também uma associação do consumo de maconha com prejuízos na memória recente. Um estudo em ratos demonstrou que quando tratados com delta-9-THC (composto psicotrópico encontrado na maconha), houve uma diminuição na habilidade destes ratos de realizar tarefas que requerem o uso de memória a curto prazo. Este mesmo estudo evidenciou uma destruição nas células do hipocampo. Concluiu-se que o consumo crônico de maconha pode apressar a perda de neurônios associadas com o envelhecimento. Mais recentemente, verificou-se que o déficit de atenção e memória evidenciados de 0-6h após o consumo  regridem após cerca de 1 mês de abstinência.  Porém, a capacidade de tomada de decisão, formação de conceitos e planejamento  são mais duradouros.  O decréscimo na fluência verbal (grande dificuldade de apresentar uma ideia com coerência e fluência), é um sintoma que não aparece necessariamente logo após o consumo, mas quando é observado no consumo crônico, pode não ser revertido. Os estudos sobre a capacidade cognitiva concluem que quando o contato é realizado na adolescência, que é um período de desenvolvimento neuronal, os indivíduos tornam-se muito mais vulneráveis a estes efeitos.

   Considerando os efeitos cardiovasculares, existe uma maior demanda por oxigênio acompanhado pelo aumento do trabalho cardíaco e distribuição de uma menor oxigenação devido ao monóxido de carbono gerado. A taquicardia e os efeitos na pressão arterial não costumam ser um problema em indivíduos jovens, que geralmente não possuem patologias cardíacas. Mas pode ser uma preocupação relevante em usuários cardiopatas ou em extremos de idade.

   Dependência: 
  
   Apesar dos usuários alegarem que não são dependentes desta droga (exatamente como fazem os usuários das outras), os canabinoides apresentam um regime de auto-administração semelhante às demais drogas de abuso nos estudos que buscam avaliar o potencial de dependência. Os receptores canabinoides CB1 são capazes de ativar o sistema de recompensa, e por isso conclui-se que a maconha pode sim causar dependência. 
    Recentemente, foi publicado um estudo muito interessante sobre a dependência, realizado em ratos, onde foi comprovado que o THC pode exercer efeitos que predispõem a uma maior dependência a opioides, como heroína. Foi administrado THC em ratas antes da gestação e depois comparou-se o potencial dos filhos destas ratas de se tornarem dependentes de heroína. Utilizou-se doses realistas para usuários recreativos de maconha e esperou-se 4 semanas como um período de wash out (visando eliminar o que ainda poderia estar no sangue das ratas) e então, as ratas engravidaram. O objetivo desta experiência foi simular aquele usuário que utiliza maconha na adolescência e tempo depois engravida, mas não consome a droga durante a gravidez. A análise da prole destas ratas evidenciou que os filhotes das mães expostas previamente ao THC, quando adultos, buscavam o dispositivo que liberava heroína significativamente mais do que os filhos de animais controle. Os autores sugerem que este fenômeno possa ser explicado por efeitos epigenéticos (variações na estrutura da molécula de DNA que poderiam predispor a uma maior tendência a dependência).

   Tolerância: 

   O uso prolongado de Cannabis promove uma diminuição no número e eficiência de receptores CB1. Esta tolerância ocorre mais rapidamente em regiões corticais cerebrais do que nas sub-corticais. Assim, os fumantes crônicos de maconha apresentam tolerância para perda de memória, por exemplo, mas não para a sensação do barato ou diminuição do controle motor.

   Síndrome de Abstinência

   Antigamente, era negligenciada, mas nos últimos anos, ganhou reconhecimento como um componente importante no tratamento da toxicodependência de maconha. As taxas de recaídas são comparáveis a de outras drogas, demonstrando que parar o uso não é tão fácil como se imaginava.
   São sintomas da abstinência: sonhos bizarros, irritabilidade, agitação, ansiedade/nervosismo, diminuição do apetite, distúrbios do sono, humor deprimido,... Geralmente iniciam após uma semana de abstinência e terminam algumas semanas após.


    É claro que este post teve como foco os aspectos toxicológicos (e efeitos tóxicos são sempre negativos) da maconha. Ainda assim, há outros compostos que tem efeitos negativos e que são lícitos. Por isso, meu objetivo com este post foi apenas colocar na mesa algumas informações, e cabe a cada um julgar como gostaria de tratar esta substância (analisando aspectos sociais e toxicológicos). Com relação ao potencial medicinal da Cannabis, já me posicionei em posts diretamente focados nesta discussão, que você pode encontrar aqui e aqui.

   Para ter acesso a um compilado de estudos sérios sobre a maconha, recomendo o capítulo Cannabis, escrito pela Regina Lúcia de Moraes Moreau no livro Fundamentos de Toxicologia, 4° Edição, de Seizi Oga, Márcia Maria de A. Camargo e José Antonio de O. Batistuzzo. Recomendei um livro mesmo tendo falado sobre a facilidade de publicar livros sem revisão prévia pelos pares porque este livro é a obra de referência da Toxicologia no Brasil, referendada como tal inclusive pela Sociedade Brasileira de Toxicologia. Quem tiver mais intimidade com artigos científicos, pode procurá-los nas bases de dados e julgar sua qualidade.

  Provoco os meus alunos a se posicionarem criticamente sobre a legalização da maconha nos comentários, com base nas discussões da sala de aula, leitura de textos recomendadas e de demais textos que o seu interesse lhe fez procurar...

2 comentários:

  1. Boa noite, Prof.ª Luciana!
    Eu defendo a legalização do uso da maconha, e também a criação de políticas de saúde mais ativas para quem já usa, mas que gostaria de parar, porque por mais que a maconha seja incomparavelmente menos perigosa que as outras drogas ilícitas, também exige cuidados e políticas voltadas a ela.
    Vejo vários pontos positivos em relação à legalização, e gostaria de esclarecer meu ponto de vista em relação a todos eles.
    Primeiramente, creio que a legalização, hipoteticamente, não aumentaria o número de usuários da droga (se aumentasse, seria muito pouco), e por outro lado, defendo também que os usuários “ativos” teriam uma maior segurança ao comprar a droga, tanto do ponto de vista farmacológico e toxicológico, quanto do ponto de vista social, visto que o usuário não precisaria se deslocar até as chamadas “bocas de fumo” lideradas por traficantes para obter a droga. Isto é, em resumo, garantiria uma boa qualidade do produto e segurança ao usuário, que não esqueçamos, é um ser humano e também precisa de cuidados.
    Como segundo ponto, vejo como uma forma de retirar o poder do tráfico, desviando-o para o governo. Aumento da verba com investimentos em áreas mais necessitadas como a da saúde e a da educação.
    Além disso, deve-se estabelecer uma idade mínima para o consumo, visto que esta droga (principalmente se utilizada durante a adolescência) tem consequências muito ruins para o aprendizado.
    Deve-se quebrar o tabu de que maconha é porta de entrada para drogas mais potentes, isto em parte é mito. Recentemente li um estudo cuja duração foi de 20 anos que demonstrava que o uso de maconha por adolescentes (que foram acompanhados até a idade adulta) não tinha correlação com o uso de outras substâncias. Os grupos apresentados foram os mais diversos, desde adolescentes que nunca fumaram nem na adolescência, nem na vida adulta, jovens que fumaram na adolescência e não usaram quaisquer outros tipos de droga na vida adulta, jovens que não usaram e passaram a usar na vida adulta, dentre muitos outros.
    A maconha, obviamente, não tem apenas pontos positivos, pois seu uso pode apresentar perigo para outras pessoas (acidentes de carro com pessoas sob efeitos da droga) e para o próprio usuário (alucinações, pânico, etc...).
    Creio que, assim como o álcool e o tabaco, a maconha tem seus prós e contras, e em comparação, a curto e longo prazo, o álcool e o tabaco demonstram maiores riscos à saúde e bem-estar do indivíduo e da comunidade.

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    1. Laís, são essas ponderações que precisam ser feitas para uma análise crítica.
      Concordo com você que é mais razoável tratar um dependente de maconha como um doente e não com um criminoso, pois esta droga, considerando o seu potencial de dano ao indivíduo e aos outros, é mais parecida com as lícitas do que as ilícitas. O investimento em políticas públicas é fundamental.
      Também acho que a legalização não aumentaria o número de usuários de maconha. Até porque a maioria das pessoas que usa maconha hoje em dia, fica só nela. Acredito que atualmente quem quer usar, usa. Possivelmente com a legalização, o usuário teria sim mais segurança e um produto com algum controle de qualidade, coisa que atualmente é difícil. Porém, uma questão que sempre penso é: será que o usuário aceitaria pagar por um produto legal, porém mais caro (devido à carga tributária) ou o preço mais barato das bocas continuaria competitivo e uma alternativa muito usada, mesmo que ilegal? Coloco essa questão, mas acredito que apenas uma minoria se sujeitaria a comprar o produto ilegal, se houvesse opção, assim como cigarro. A maioria das pessoas que fuma, fuma o produto legal e não o clandestino.
      Muito interessante essa política que a legalização permitiria: focar em populações especiais que devem evitar a droga, como os adolescentes.
      Gostei muito da tua avaliação crítica e da tua participação neste espaço! Continue acompanhando! Beijos!

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