domingo, 25 de janeiro de 2015

Habemus canabidiol! E aí?

   No dia 14 de janeiro de 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) decidiu pela reclassificação do canabidiol, que antes tinha o status de substância proibida e agora passa a receber o tratamento de substância controlada (Lista C1 - Portaria 344/1998). Desde então, muito tem sido discutido a este respeito e também muitas dúvidas permanecem.


Canabidiol, composto isolado, e a popular folha de maconha.

  Primeiramente, o que é o canabidiol? 
 Este composto é um canabinoide presente na Cannabis sativa. Vale lembrar que a Cannabis sativa é uma planta complexa. Mais de 480 compostos já foram isolados da Cannabis, entre eles cerca de 70 canabinoides. Os canabinoides são compostos que atuam nos receptores canabinoides que estão presentes no sistema nervoso e imunológico. E se temos receptores específicos para estes compostos, é sinal que temos algo endógeno capaz de atuar nestes locais, certo? Portanto, saiba que todos nós produzimos os nossos próprios endocanabinoides (compostos com estrutura química similar aos canabinoides encontrados na Cannabis sativa). 

  O que provocou a alteração da posição da ANVISA com relação a este composto?
   A discussão ganhou força com casos extremos de pacientes portadores de espasmos e epilepsia que não respondiam às alternativas terapêuticas no mercado. Anny Fisher,  que apresentava cerca de 30-80 episódios convulsivos por semana, apresentou melhora no quadro com o uso do canabidiol. Após a divulgação do caso, mais famílias brasileiras passaram a tentar autorizações judiciais  para importar o canabidiol. Mas como este composto era proibido, este processo era bastante burocrático. O pico das discussões em torno deste tema ocorreu em 2014, culminando com a decisão de readequação do composto pela ANVISA em 2015. 
   Esta discussão seguiu de forma paralela a outro debate no Brasil: a maconha deve ser legalizada?  E aí que começa a confusão.

  Conforme já referido, a maconha tem composição muito complexa. O que aconteceu até o momento foi a reclassificação de um destes componentes, que deverá ser utilizado de forma isolada e purificada. Isto é muito positivo pois os cientistas brasileiros poderão estudar os efeitos deste composto com maior facilidade. Além disso, os casos extremos que estavam sem alternativas poderão importar o medicamento (pois no momento ainda não temos nenhum medicamento com este princípio ativo registrado no Brasil). Mas é preciso ponderar que não podemos ter nenhum preconceito com o canabidiol por causa da sua origem, e muitas vezes testemunhamos duas correntes:

1- os que defendem que não há evidências suficientes para que este composto seja utilizado e por ser isolado de uma droga, não deveria ser liberada (esta corrente está cada vez mais rara, mas ainda existe e tem alguma razão: de fato são poucas as evidências. Precisamos conduzir estudos clínicos para avaliar todos os efeitos positivos e negativos. As evidências que temos até o momento são em casos extremos e exatamente por isso consegue-se pular algumas etapas nestes ensaios devido a gravidade e ausência de alternativas. Mas sem sombra de dúvidas, devemos utilizar o potencial medicinal desta droga, desde que de forma técnica e responsável para produzir as evidências que vão sustentar a terapêutica a longo prazo).

2- os que alegam que a maconha tem um potencial maravilhoso e deve ser explorada. Alguns mais radicais defendem que fumar maconha pode resolver epilepsia, convulsão, distúrbios psiquiátricos, enfim, é tudo de bom. Calma! Efeitos com medicamentos tecnicamente elaborados a partir de canabidiol não são sequer comparáveis com um cigarro de maconha. Não é esta a indicação! Precisamos saber o real teor de canabidiol, a forma farmacêutica correta (se vai ser spray nasal, comprimido, cápsula... tudo isso fará diferença) em um produto que passou por padronização e controle de qualidade. Um cigarro de maconha é sujeito à vários contaminantes externos e a presença dos outros compostos e fitocanabinoides podem inclusive ter efeito contrário ao desejável.

  Particularmente eu não acredito que iremos chegar no ponto de plantarmos Cannabis para extrair o canabidiol. Primeiro porque o teor dos compostos das plantas é muito variável com as condições de solo, umidade, temperatura,... o que coloca um entrave técnico. Segundo porque o teor do canabidiol é muito baixo e o rendimento dos processos extrativos não compensaria. Acredito que o caminho será sintetizar em laboratório o canabidiol através de processo químico. E não torça o nariz para a palavra sintética!
  Algo curioso: um dos primeiros estudos que sinalizaram um potencial terapêutico do canabidiol foi realizado por brasileiros. Não consigo entender por que não fomos pioneiros na continuidade destes estudos, tratamentos e legislação. Por que a ciência básica não se traduziu em ciência aplicada? De enlouquecer!

  Tudo isso e muito mais foi abordado no programa "Conversas Cruzadas", da TV COM, de 20 de janeiro (link abaixo). O debate é esclarecedor e vale muito a pena! 
   Mas não confundam a reclassificação do canabidiol com a legalização da maconha. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. A perspectiva da legalização da maconha voltará a ser abordada no blog, aguardem!


PS: Um dos ouvintes referiu que nunca ouviu falar em nenhum caso de morte por maconha. Como eu trabalho com isso, já vi os dois extremos quando se trata de droga: a "droga pesada" que não faz efeito e a "droga leve" que tem efeitos devastadores. Não há muito padrão pois depende de uma série de fatores (individuais e da própria droga, que é sempre de composição complexa e cheia de adulterantes).  Aqui você encontra um caso de morte com maconha sintética.

Já sei, você pensou, novamente: ah, mas é sintética! Voltaremos a discutir a máxima "tudo que é natural faz bem" aqui no blog!


12 comentários:

  1. Excelentes esclarecimentos. .. muito importante entender a diferença entre um composto isolado e a maconha. A legalização da maconha deve ser muito bem discutida, e eu, particularmente sou contra, pois se sabe que a maconha representa uma porta de entrada para outras drogas mais pesadas, além dos malefícios a nível cerebral como deficit de atenção e dificuldade de concentração e consequentemente de aprendizado. O esquecimento é um dos efeitos mais relatados pelos usuários da droga. Então vamos colocar a cabeça no lugar e usar o composto isolado para pacientes doentes que não respondem a outros tratamentos convencionais.

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  2. Vi várias reportagens de pacientes que só conseguiram ter melhor qualidade de vida com o uso deste composto, o que as faz conseguir na justiça o direito de usa-la ou até importa-la irregularmente. Estudos são necessários sim e muito ! Mas acho que por enquanto deve ser utilizado, com controle é claro, pois muitos só tem este recurso.

    Patricia B. Moras

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    1. Concordo com você! Há pessoas que não tinham outra alternativa e agora tem. Como são casos extremos, os estudos clínicos são abreviados devido à gravidade. Estas pessoas podem e devem tentar, com base nas poucas evidências que temos em casos semelhantes. E agora vamos poder estudar os efeitos a longo prazo e decidir se os benefícios compensam os possíveis riscos, como é com qualquer medicamento. Por exemplo: hipoteticamente se descobrirmos que este composto também altera a memória quando usado cronicamente, ainda assim os benefícios podem ser maiores do que o paciente teria na ausência da medicação, pois 30 convulsões por dia podem lesar muito mais este paciente. O passo dado com relação ao canabidiol foi positivo sim! O que temos que esclarecer é que isto não significa fumar um baseado de maconha. Esta discussãoé outra! Obrigada pelo seu comentário! São os comentários que possibilitam a discussão! Continue acompanhando, voltaremos a falar disso!

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  3. Estou preparando uma série de posts sobre a legalização da maconha para a semana em que este assunto for tratado na disciplina de Análises Toxicológicas. Eu entendo que esta questão envolve abordagens de políticas sociais, e esta discussão ultrapassa a base farmacológica. No entanto, os efeitos da droga devem ser entendidos e alguns mitos, desmistificados. Só assim poderemos entender e debater, conhecendo exatamente o que estamos aprovando. Se optarmos pela legalização, o faremos conhecendo os danos. E sim, é verdade que drogas lícitas como o álcool, tabaco e muitos medicamentos também produzem prejuízos. Mas eu não sou a favor da banalização destas drogas e nem do uso irracional de medicamentos! Então tenho dificuldade com este argumento e alguns outros mitos que quero abordar aqui. Por isso que insisto que a discussão legalizar ou não é política: como vamos enfrentar a questão das drogas? Outro ponto crucial é: droga é droga. A única certeza é que, inevitavelmente, o consumidor leva gato por lebre, pois junto com a droga existe de tudo!

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  4. Post esclarecedor! Mas vale ressaltar que Anny Fisher, citada no texto, é brasileira e protagonista do curta "Ilegal", que trata da luta da família de Anny e outras mães pela importação do canabidiol no Brasil. Os pais fizeram até um esquema de gráficos, mostrando o quanto o canabidiol foi eficaz no caso de Anny. Contudo, penso que o canabidiol merece muita atenção dos médicos e farmacêuticos brasileiros, que deverão estudar a fundo este fármaco, para ter muito critério na hora de utilizar esse medicamento, que apesar de ser antigo, também é novo! E mais um desafio, agora como profissionais da saúde: enfrentar o preconceito da opinião pública, que ainda pode misturar as coisas!

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  5. Obrigada, Elizane! Eu ainda não assisti o curta, mas está na minha lista das férias! Fiquei ainda mais curiosa depois do teu comentário. Concordo plenamente com a tua opinião! Vamos aguardar os próximos capítulos desta história tão desafiadora para nós, farmacêuticas!

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  6. Luciana, se faltam evidências científicas, imagino que seja pelos altos custos que estas envolvem, e pela impossibilidade de se patentear a planta.
    Sim, já existem sintéticos a tempos, do THC. Marinol/dronabinol é um sintético que é uma cópia do THC.
    Se ele foi sintetizado é por que também tem um uso. E também que ele foi testado e aprovado, do contrário não seria vendido.

    Mesmo não tendo estudos científicos, há comprovação prática. Não é atoa que a metade dos EUA terem regulamentado o uso medicinal. E esse número só cresce. É por que é útil, muito útil. Seja eliminando convulsões (compostos ricos em CBD), seja controlando a dor, os efeitos colaterais da quimioterapia (THC)... entre outros... a planta já demonstrou grande potencial. E há estudos iniciais mostrando potencial para diversas outras áreas: combatendo células cancerígenas, neuroprotetor..

    Quanto as formas de uso, desculpe, mas você se engana que o uso inalado não tenha seu valor terapêutico. Para alguém que não consegue nem engolir água, pois vomita, a fumaça (ou vapor, de vaporizadores) pode ser a única opção. O efeito pode ser obtido através da inalação da fumaça da combustão da planta. Aliás, a dosagem PODE ser melhor feita assim, do que engolindo comprimidos com componentes concentrados. Claro, com a cepa correta da planta, com a configuração correta.

    Quanto a necessidade de haver uma sintetização, digo que há pesquisadores da área que discordariam de você (Renato Malcher Lopes, Sidharta Ribeiro, para citar dois..). Sabe-se os canabinoides possuem efeitos diferentes, e as vezes até mesmo opostos. O mais "emblemático" é o do THC e CBD. Um pode causar quadros de psicose e o outro é anti-psicótico. Então, o uso separado destes compostos, pode ser mais perigoso que o uso "in-natura".

    Quanto a composição das plantas, já existem milhares de variações, com mais ou menos canabinoide X ou Y. A empresa GW Pharmaceuticals possui plantações na Inglaterra, com linhagens extremamente controladas e produz um spray (Sativex) com componentes naturais da planta.

    Desculpe o tamanho do comentário. Muito obrigado por particpar do debate.

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  7. Obrigada por fomentar a discussão com argumentos tão pertinentes, João Claudio Moro! Eu quis deixar claro que no momento, o que aconteceu foi a liberação de um composto da erva, e não a erva propriamente dita, para ser utilizada na forma inalada. Mas realmente, conheço alguns estudos deste potencial. Temos que estudar e verificar se em pacientes não terminais conseguimos utilizar de forma segura a longo prazo. Acredito que o principal é quebrar o preconceito com a droga. Também podemos pensar que o ópio é uma droga e a partir dele temos a heroína (super destrutiva) e a morfina, medicamento de uso inquestionável e que também é uma droga. Mas com a maconha que é muito mais leve parece que o entendimento é mais difícil, às vezes tenho essa impressão. Pode ser que eu esteja errada sobre a síntese, mas te confesso que eu sou mais entusiasta da síntese química do que os produtos naturais no geral porque acho que é menos sujeito à variabilidades (mas é minha opinião pessoal). Continue participando das discussões. Em março falaremos mais precisamente sobre a legalização da maconha. Não sei de onde você é, mas aproveito para te convidar para um evento que pode te interessar: Exibição do filme "Ilegal" que acontecerá em Tapejara, dia 12 de fevereiro, às 19:30, no Centro Cultural José Maria Vigo da Silveira. Após a exibição, haverá debate com a farmacêutica Elizane Langaro e um advogado. Tentarei comparecer para prestigiar este evento.

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    1. Oi Luciana, se esse debate sobre a legalização da maconha, eles vai ser aberto ao público? Se sim, que dia e horário será? Aonde?

      Esperamos você para ver o documentário ilegal aqui na cidade!! Você será super bem vinda!!
      Queremos alguém para fazer questionamentos hehe

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  8. O debate sobre a legalização da maconha acontecerá aqui no blog, em março. Ainda vou divulgar o cronograma, mas falaremos sobre os aspectos farmacológicos, legais e sociais da proibição. Também pensamos em fazer um evento presencial. Caso confirme, eu divulgo, será ótimo contar com a sua presença!

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    1. Com certeza quero participar! Pela internet é mais fácil o debate por que pode-se passar artigos e inclusive estudar até mesmo a validade/limites desses artigos.

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    2. Contamos com você então! Assim que eu souber a data, divulgo aqui!

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